Ano passado, organizei para o Instituto Cultural Itaú, com ajuda de vários colegas de diferentes regiões do país atuando como sub-curadores, a mostra “BR 80 – Pintura Brasil Década de 80” . O evento resultou em oito exposições realizadas quase simultaneamente em diversas capitais, acompanhadas de conferências, debates, catálogos e, posteriormente, de um livro e da edição de mostra informatizada, que continua circulando pelo país. Assim, além de oferecer um balanço da produção pictórica brasileira da década passada, o evento vem ajudar a manter vivo o debate sobre a importância da pintura enquanto espaço da reflexão. BR-80 indicou, claramente, que a pintura continua viva e atuante nas diferentes regiões do país, ou melhor, indicou que uma parcela considerável da melhor pintura brasileira está sendo produzida fora do eixo do Rio- São Paulo. Cito alguns exemplos, entre os jovens: Rinaldo Silva e Alexandre Nóbrega, do Recife, Alice Vinagre de João Pessoa, Eduardo Cabral, Elder Rocha e Evandro Salles, de Brasília, Luis Mauro, de Goiânia, Adir Sodré e Gervane de Paula, de Cuiabá, Karin Lambrecht e Gisela Waetge, de Porto Alegre, Rubens Oestroen, de Florianópolis, Emmanuel Nassar, de Belém, Luiz Hermano e Eduardo Eloy, de Fortaleza. Entretanto, a melhor surpresa de BR-80 foi mesmo a mostra regional de Fortaleza, reunindo artista de vários estados do Nordeste, e que teve como sub-curador Roberto Galvão. De fato, o circuito Recife-Olinda-João Pessoa-Fortaleza vem se afirmando como área essencialmente pictórica, com uma vitalidade que explode generosa, nas telas dos artistas da nova geração. Esta exuberância criativa tem raízes na própria história da arte regional: na atuação, em décadas, de grupos ou entidades como a Sociedade de Arte Moderna e do Ateliê Coletivo do Recife, da Sociedade de Artes Plásticas e do Salão de Abril, em Fortaleza, bem como de artistas do porte de Brennand, José Cláudio, João Câmara, Antonio Bandeira, Hélio Rola, Leonilson etc.
Hoje, por exemplo, a capital cearense destaca-se no país pela ótima movimentação artística, seja através de novas galerias de artes, seja devido a iniciativas como as de Sérvulo Esmeraldo, idealizador da Exposição Internacional de Escultura Efêmera, que reuniu, em duas edições, no parque Cocó, artistas brasileiros de renome e algumas sumidades internacionais. E neste momento, Roberto Galvão, Eduardo Eloy e outros se mobilizam para criar ali uma escola de artes plásticas.

Eduardo Eloy já avançou para a meia idade e seu currículo, dos mais respeitáveis, soma vitórias dentro e fora do país. Recentemente expôs em Madrid e Paris, nesta última cidade despertando o interesse de Ceres Franco, uma das idealizadoras de Opinião 65. Seus vínculos com o Rio de Janeiro datam da década de 70, quando aqui iniciou seus estudos de arte na Fundação Calouste Gulbenkian e, em seguida, na Escola de Artes Visuais do parque Lage, berço da geração 80. No Rio, participou do Salão Carioca, em 1978, e do Salão Nacional de Artes Plásticas, em 1982 e 1985. Aqui também realizou sua segunda individual, em 1983, na galeria Rodrigo Melo Franco de Andrade, da Funarte.
É interessante observar que sua formação, nos dois endereços cariocas, foi essencialmente gráfica: xilo, lito e metal. E mais, seguindo uma das tendências dos anos 80, que foi o trabalho coletivo, Eduardo Eloy criou em 1986, em Fortaleza, o Grupo Aranha, que fez diversas intervenções pictóricas nos muros da cidade. Este muralismo alternativo, que se aproxima do brigadismo de Matta, no Chile, e/ou da “pintura eleitoral” do Recife e Olinda, em 1982, é mais gráfico que pictórico, o que, em grande parte se explica pela urgência expressiva de seus autores, dispostos, então, a estabelecer um diálogo criativo com o público da rua. Esta dimensão gráfica ainda está presente na sua pintura atual, mas a cor vai ocupando áreas sempre maiores, a linha cedendo lugar às manchas, as quais criam um fundo onírico para suas figurações fantasmáticas. O artista fica a meio caminho entre o desenho e a pintura. E se menciono isto é apenas para facilitar uma compreensão de seu trabalho, pois, a rigor, a busca do específico pictórico ou gráfico carece, hoje, de significado maior na medida em que a arte e o mundo vão revisando de forma extremamente dinâmica suas fronteiras  e as colisões entre as diferentes culturas são cada vez mais freqüentes. Tudo hoje é híbrido, escorregadio, tudo desliza, nada mais é fixo estável, permanente.

As oposições entre centro e periferia, entre o regional e o internacional, entre o público e o privado, entre o popular e o erudito ou entre a cultura de massa e a cultura de elite, tendem a desaparecer, tudo deságua numa espécie de vala comum ou terreno baldio. Para Roberto Galvão, que sobre ser um ótimo pintor é também autor do livro “Uma visão da arte no Ceará” (1987), a obra de Eduardo Eloy “reflete a força e a luz da região em que vive. A sua arte é agreste, o gesto nervoso e carregado de vigor e, contrariamente à sua fatura rústica, o universo temático é envolto por uma poética de recordações dos tempos de infância e de fantasias que são próprias de seu povo, mesmo quando retratam os problemas do mundo contemporâneo”. Galvão vincula o artista e sua geração á vertente expressionista. Talvez fosse melhor falar em Neo-expressionismo, mesmo se não encontramos em suas telas aquela angústia típica da arte alemã. Na verdade, ele estaria ligado a uma Nova Figuração, nascida nos anos 60, em Paris, ou a caminho da New Image dos anos 80, pela presença simultânea, em suas telas, de elementos irônicos e líricos.

De fato, existem em sua pintura ressonâncias arquetipais, populares e regionais. Mas não se trata apenas da memória dos tempos infantis vividos numa região luminosa e tropical, mas, sobretudo da apropriação de uma narrativa infantil, isto é da estória sempre reinventada, de percursos continuamente refeitos. Mescla de garatuja infantil e grafite juvenil. Da gráfica infantil guardou esta ausência de fundo e de volumetria, pois na sua figuração tudo é transparente: os frutos na árvore, os peixes no mar, o feto no ventre grávido. Cada forma humana residual abriga outras imagens e figurações. Metamorfoses contínuas, híbridos de animais-máquinas gente-bicho, corpos-carnes-vídeo, monstros urbanizados e / ou domesticados. O imaginário nordestino ou sertanejo convivendo com os signos de uma sociedade high-tech e de consumo. Sertão e tv. Imagens de primeira e segunda geração. O artista apropria-se claramente da linguagem fragmentária da televisão, dos quadrinhos, do cinema de animação, do grafite e da publicidade. A ironia e a crítica permeadas por toques de lirismo e erotismo. No seu traço deliberadamente rude e áspero, pode-se notar, aqui e ali, afinidade com artistas do Grupo Cobra (Alechisnki,Constant) com a art brut de Dubuffet, com a erótica de Matta, Antonio Henrique Amaral e Victor Arruda e até com  a arte dos esquizofrênicos. Sua narrativa é fragmentária, determinando um espaço e um tempo descontínuo. Tudo em suas telas está aberto a metamorfoses de significado. Assim, em última análise, cabe ao espectador juntar os signos e símbolos dispersos, estes pedaços de corpos e máquinas, estas imagens inconclusas ou em formação, enfim tudo o que é virtual e latente e dar um sentido. Afinal contemplar é também narrar. Olhar é recriar.

Frederico Morais 
Critico de Arte e Historiador. Escritor de colunas jornalisticas em arte e professor da Escola de Design da Universidade Santa Ursula, da Escola de Jornalismo da UFRJ e na PUC – Rio e trabalhou como curador no MAM Rio.

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