Os trabalhos que Eduardo Eloy nos apresenta na mostra do Museu de Arte Contemporânea de Fortaleza revelam sua inquietação poética e sua vocação para a pesquisa no exercício da arte.
O artista tem sua trajetória escrita no universo da arte contemporânea, onde limites entre as disciplinas convencionais como o desenho e a pintura podem ser transgredidos. A transgressão é uma premissa esperada, nesse universo, permitindo a elaboração de técnicas mistas e multimídias, alargando o campo de criação ao infinito e tornando-o sempre mais complexo. Da mesma forma, a liberdade de movimentação pelas diferentes estéticas e movimentos artísticos, que a arte contemporânea permite facilitar as relações entre modos técnicos que marcaram diferentes momentos da história da arte.
O conjunto dos 70 trabalhos de Eduardo Eloy, em exibição no MAC, situa-se, dentro dessa dimensão de contemporaneidade, num novo espaço de sua pesquisa. Este espaço é um lugar peculiar de diálogo entre desenho e pintura, um lugar de interação dos dois meios artísticos, onde há intensas trocas poéticas.
Seus desenhos fortemente com a cor trazida à superfície do papel pela “aguada de café”. De um lado, vemos a artista fiel à sua pesquisa gráfica, à iconografia simbólica que vem caracterizando seu trabalho ao longo do tempo, tanto na pintura como na gravura e no desenho. De outro lado, nós o vemos imergir em novos problemas estéticos nascidos da técnica, da matéria, problemas estes que renovam sua reflexão plástica.
A chave deste ponto de encontro entre as práticas da pintura e do desenho está no uso da “aguada”, não à maneira antiga, mas a aguada praticada num ato de transgressão, por via de um ponto de consumo cotidiano, como é o café. A nosso ver, aguada remete à pesquisa pictórica, no sentido mais pleno do termo, quando o suporte é o papel. A aguada é uma técnica pictórica milenar, conhecida desde a Idade Média; ela permite a utilização de ampla gama cromática, a partir do uso de uma só cor. A partir da modernidade, podemos entendê-la como pintura pura, que em si mesma provoca maneiras experimentais de aplicação.
Na linguagem contemporânea, é amplo o campo da invenção técnica em que o artista pode mergulhar, ao elaborar seu projeto estético. A experimentação que Eloy vem desenvolvendo, nos últimos três anos, nasceu do acidente de um café derramado entre um trabalho. O resultado da mancha sobre o suporte foi, imediatamento, capturado esteticamente e logo vieram novas indagações e o estímulo para pesquisar as formas imprevistas. As manchas aleatórias estimulam o artista, criam um novo desafio no trabalho com o especo plástico. Nele, vai intervir com traços internacionais ou impulsivos, com pequenos gestos ou gestos largos, com a inscrição de seu vocabulário iconográfico, fruto da imaginação.
Jogo de descoberta tornam-se estratégias para mover o processo criativo de Eloy. Eis aí o desafio da aguada de café. O pigmento líquido do café sobre o papel canson desliza, determina intensidades diversas, produz uma impregnação variável.
O artista começa a manejá-la, explorando a expressão direta da cor, dos tons amarronzados. Os tons que marcam a superfície podem ser de diferentes qualidades, ora mais fortes, ora bem suaves. O artista intervém e controla, conforme a fatura desejada em cada trabalho. A cor se move livre e, ao mesmo tempo, conduzida. Das zonas coloridas nasce um mundo lírico em si mesmo, no qual o artista vai introduzir a grafia de linhas e formas figurais. Cada acidente da matéria sobre o superfície carrega-se de sensações e resulta em expressão, convida à escritura com desenho a nanquim ou com a caneta usada para marcar os CDs. No gesto do artista está no prazer intervenção.
Desta forma, Eloy ultrapassa o uso tradicional da aguada e desenvolve a expressão de sensações subjetivas. Nesta fase de seu trabalho, o emprego expressivo da material tonal e a experiência do desenho são valorizados como procedimentos e dão origem à obra. O suporte torna-se o lugar onde um processo determinado de elaboração plástica é intuído. Em outra ocasião, ao analisar trabalho de Eduardo Eloy, ressaltei o fato de que, em sua arte, a experimentação e a imaginação pessoal estão diretamente interligadas, deixando vir à tona o que a consciência captura e registra instantaneamente.
Eduardo Eloy, ao longo de cerca de 30 anos dedicados ao desenho, à gravura, e à pintura, vem encontrando na experimentação e na imaginação as razões motivadoras para investigar as qualidades dos materiais. Fabricou, por muito tempo, papel artesanal para a realização de seus trabalhos artísticos e difundiu, pelo ensino da arte, o alcance da dimensão estética das texturas do papel, o entendimento do papel como realidade plástica em si mesmo. Por outro lado, sua vivência de professor levou-o a estudar os materiais e as técnicas aplicáveis sobre este suporte, explorando a potencialidades dos meios de expressão. A criatividade vem sendo um forte marca na prática artística de Eduardo Eloy. Como artista, ele sempre soube como deixar a imaginação dar vôos e soube aproveitar a pulsão para inscrever novas escrituras no espaço plástico. Na arte, as imagens inscritas no espaço têm sempre algo de fenomenológico.
Relembramos o que diz Bachelard a este respeito: a imagem emerge de um excesso de imaginação, da “dialética do ocultado e o manifesto, do plácido e do ofensivo, do fraco e do vigoroso”… Segundo o autor francês, a imaginação trabalha o espaço, o tempo, as forças, não só no plano das imagens imediatas que emergem à mente, mas também no plano das idéias. O excesso de imaginação leva ao devaneio, e tudo que tem forma leva a uma ontogênese. A imagem criada resulta da vida expressa por via dos sentidos. E há, também, sempre uma dimensão gnosiológica no trabalho artístico. Uma obra de arte ensina a ver o que antes não havíamos visto. É este exercício de olhar, de ver, de sonhar poeticamente que a presente exposição de Eduardo Eloy nos convida a realizar.
Lisbeth Robello Gonçalves
Professora Titular da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, Presidente Associação Brasileira de Críticos de Arte e Presidente da AICA – Associação Internacional de Críticos de Arte.
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